Inverno
– Vai com calma! Por favor... assim não! Me deixa ao menos te beij...
Por f....
Não houve espaço para conversa. Só depois de consumir o ato ele
saiu de cima dela. E, apesar do corpo dele não estar mais sobre ela, ela não
conseguia se mover, estava paralisada! Era como se sentisse esmagada e sem forças
para reagir.
– Por que?
Ele se levantou e se vestiu, indiferente. Falou para ela fazer o
mesmo. Mas ela passou um bom tempo ali, imóvel, tentando processar o
improcessável. Ela tinha noção do que tinha acontecido, mas estava em choque, entorpecida,
como que em uma batida forte onde você necessita de algum tempo para voltar a
si e processar o ocorrido.
– Por que?!
E assim ela foi para o banheiro. Sentia raiva, dor, nojo,
abandono... Se sentia suja, como se toda a sua pele estivesse impregnada de uma
sujeira impossível de se retirar a não ser que arrancasse toda a pele do seu corpo!
E era o que ela queria fazer! Sentia dor, muita dor! Uma dor interna que
começava a brotar e corroía como ácido! Tentou se machucar, cravou as unhas em
sua pele, forte, para que a dor física a aliviasse, nem que por um segundo, a
torturante dor emocional que a assolava... mas foi em vão! A água escorria pelo
seu corpo, descia até a sua vagina que ardia, pois estava machucada. Com a
cabeça apoiada no azulejo e olhando para os seus pés molhados ela não conseguia
verbalizar, mas a cabeça dela, atordoada, só tinha um questionamento:
– Por que?!
Ele era o seu namorado, aquele que dizia que a amava, mas não soube
respeitar os limites daquela que só queria uma noite de carinho e de comunhão.
Buscando satisfazer as suas, e só suas, necessidades, ele ultrapassou todos os
limites do respeito e a violentou! E ela se sentia tão culpada por isso ter
acontecido! De certa forma, ela que o chamou para sair pois queria viver com
ele um momento de intimidade, apesar de que não daquela maneira. Agora se torturava porque ela
simplesmente não conseguiu impedir aquela violência e se encontrava em pedaços.
– Por que?!
Por três dias ela permaneceu sangrando e com dores ao sentar ou
mesmo ao andar de moto. Enquanto o corpo parecia sarar a alma adoecia, mais e
mais!
E ele? Ele simplesmente sumiu! Provavelmente, por medo de que
fosse denunciado, porque ele tinha plena consciência do crime que havia
cometido, ou por falta de coragem de assumir o seu erro e simplesmente pedir
perdão pelo que havia feito.
Ela então desistiu de procurar respostas nele e tentou seguir a
sua vida longe daquele que a causou mal. Mas sua cabeça estava doente,
impregnada de uma mistura de sentimentos ruins que a torturavam e cresciam como
um câncer, destruindo-a! Não havia mais uma noite de sono, nem uma manhã
tranquila onde ela não se questionasse da imensa dor que sentia! O foco nos
estudos também não havia mais. Não havia mais paz em sua mente, nem em seu coração!
Pouco a pouco aquela menina doce foi dando lugar a uma diferente: quieta,
amarga, com profundo ar de tristeza, de dor e, agora, de vingança.
– Por que?!... Mas ele vai pagar!
E dia após dia ela foi sendo tomada por uma onda negra de ódio e
vingança. Ver o outro sentir a mesma dor, que em ela era insuportável, era a
única coisa que parecia acalentar o seu coração e a acalmar momentaneamente. Ela
sabia que pelos meios legais aquele desgraçado infelizmente não ia sofrer a
devida punição. Quem vive em uma cultura machista e arcaica sabe que as coisas
funcionam assim e sabe que as leis possuem inúmeras brechas para a impunidade
do agressor e a consequente exposição e culpabilização da vítima. Talvez fosse
ela, inclusive, a principal condenada caso tentasse denunciar o ocorrido.
E em seus pensamentos ela imaginava formas que o fizesse ter uma dor
lenta e intensa, algo que o marcasse assim como ela foi profundamente marcada.
Não estamos aqui tentando
justificar o que é ou não correto. Mas era como ela sentia e em silêncio
carregava aquelas cicatrizes e aquela revolta interna, como uma panela de
pressão, prestes a explodir! Ela sabia exatamente o que fazer e como fazer, e
alimentava isso como que a um feto, como que na esperança de finalmente externalizar
essa dor e se sentir vingada!
Domingo, jogo do botafogo televisionado pela tarde, eis que ela
passa em frente a um bar e, depois de meses, finalmente se esbarra com o seu
ex, de costas, assistindo ao jogo com mais dois amigos. Aparentemente tão
tranquilo e descontraído...
– Não por muito tempo... – ela
com um sorriso de canto de boca, pensou.
Parece que o rever trouxe à tona a dor mais viva, a cicatriz mais
aparente. Doía, realmente doía reviver aquilo e uma onda de ódio invadiu todas as suas entranhas. Não existia mais racionalidade, tampouco temperança, era só
todo o corpo em fúria e excitado, pronto para atacar!
E nessas horas não tem muito o que pensar. Ela respirou fundo e
rapidamente entrou no estabelecimento. Avistando uma garrafa vazia, a tomou e
quebrou-a no próprio balcão do bar, segurando a sua boca pelas mãos e deixando
aparente a extremidade transformada em lâminas super pontiagudas. Todos se assustaram
e se viraram para ela, atônitos! Com sangue nos olhos, aquela mulher
transformada em animal selvagem só tinha olhos para o seu alvo e assim gritou:
– Jair, seu desgraçado! – disse com a voz esbaforida, como que o
coração querendo sair pela boca.
Ele a olha, assustado! E antes que conseguisse se levantar da
cadeira ela voa para cima dele com toda a sua fúria e rasga o seu rosto, na
altura da orelha até a boca, em um corte diagonal!
– Desgraçado!!!
E a partir daí foram seguidos golpes violentos na qual nem em seu
cenário mais enfurecido ela pensaria em executar, e como de fato nunca havia
executado antes. Com o ímpeto de uma onça, fez outro corte profundo do couro
cabeludo até próximo do olho direito. Muitos vieram intervir. Um segurou-a pelo
braço e retirou dela a garrafa, mas ela se esvaiu e com o punho cerrado socou o
Jair forte na região dos ferimentos... uma... duas... três vezes... Seriam mais
se não tivessem imobilizado os seus braços. Furiosa ela se esperneava e ainda
conseguiu chutar a cabeça daquele infeliz uma duas vezes e, por último, seu
saco.
Ele se contorcia no chão de dor, com o rosto inundado de sangue.
Sangue esse que também estava impregnado nas mãos e nas roupas daquela moça
ofegante, com olhos estatelados e totalmente imobilizada pelas demais pessoas
do bar.
Quem conhecia aquela menina não conseguia acreditar no que ela
tinha acabado de fazer:
– Mas não é a filha do Siqueira?
– Ela parecia uma menina tão calma, tão inteligente, não é possível
que ela tenha feito isso!
– Dizem que eles tiveram um namorico há alguns meses atrás,
certeza que ficou sabendo de alguma traição desse cara. Mulher traída perde a
linha!
E assim a polícia chegou, e logo a ambulância. Ambos foram para o
hospital: ele com a cara destruída, ela por conta de dois dedos quebrados. E,
apesar da cena de horrores, ela se sentia anestesiada, aliviada, como se
finalmente tivesse alcançado os seus objetivos: enfim vingada!
Após o atendimento médico e medicação, dois policiais vieram
colher o depoimento da moça que, pela primeira vez, conseguiu olhar novamente
para um homem e dizer, com firmeza e sem remorsos:
– Eu sou culpada! Culpada por ter sido violentada e não ter
conseguido denunciar! Culpada por ter deixado esse cara livre podendo fazer outras
mulheres de vítima! Culpada por carregar essa dor por tanto tempo sem ter feito
nada! Mas agora sinto que posso respirar, agora ele sabe como é minha dor...
E continuou:
– Eu não queria matá-lo, não seria justo comigo!
Quero que ele sinta a dor e as cicatrizes de algo que não tem mais remédio,
quero que ele olhe no espelho todos os dias e veja o monstro que ele é e se
recorde do monstro que ele me transformou! Queria que ele sofresse e hoje eu
consegui. Então, sim, eu sou culpada!
Três meses se passaram desde o ocorrido. Jair ficou 23 dias
internados pelas infecções das cicatrizes e por um moderado traumatismo
craniano. Atualmente ele responde ao crime de estupro. Por ser réu primário e, enquanto
as evidências criminalísticas são levantadas e as testemunhas acareadas, ele aguarda
o processo em liberdade. Já a sua agressora se encontra presa na ala feminina do presídio de Albuquerque por tentativa de homicídio e prisão em flagrante.
Clara, 25 anos, estudante de nutrição, filha dedicada, com uma
inteligência acima da média, ótima amiga, menina meiga e muito educada, e agora
a criminosa mais comentada da sua pequena cidade de 74 mil habitantes.
– O que você tem a dizer em sua defesa, docinho? – brinca o agente
penitenciário quando a vê passar pela cela para o seu banho de sol matinal.
– O próximo será você!
E será! Clara agora é uma fera!
...
Esse conto é dedicado a todas as mulheres e meninas que, de alguma
forma, foram vítimas de violência e tiveram as suas vozes caladas!
Esse conto é pela Izadora, 11 anos, abusada pelo tio desde os 5...
Jade, 9 anos, que precisou fazer um aborto após engravidar do seu
padrasto que a violentou...
Vilma, 43 anos, forçada a fazer sexo com seu marido alcoolizado que
a batia constantemente...
Norma, 56 anos, que teve as suas roupas rasgadas e foi duramente
estuprada enquanto voltava de mais um dia cansativo de trabalho...
Sabrina, 22 anos, que teve a sua bebida adulterada e acordou em um
quarto que não era o dela com dois homens que não conhecia e que, ao tentar
denunciar, teve que escutar de muitos que a culpa foi dela...
Essa história é por muitas, muitas mulheres, que já sofreram ou sofrem
os mais diferentes tipos de violência todos os dias e que não tem forças para
denunciar ou não recebem o suporte necessário para se sentirem seguras e
acolhidas...
Esse conto é por mim...
Esse conto é por vocês!
A Pequenininha
Ps: todos os nomes contidos no conto são fictícios.
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