O sonho


Eu fui chamada na enfermaria. Me ligaram porque aparentemente a criança precisava realizar um procedimento médico e necessitava da autorização do responsável biológico. Logo fui entrando e já era nítido os olhares atravessados, os comentários: ‘Como que a criança chega sem ela?’, ‘Fiquei sabendo que ela nunca cuidou da filha’, ‘Ela nem sequer tem os documentos da menina, pobre criança, quem cuida dela é o tio’, ‘Já ouviu falar do caso dessa mulher?’. Era alguma das vozes que conseguia pegar no ar, fora os que avistava de longe, os olhares de julgamento. Mas cenas como essa eram infelizmente comuns.

Logo me chamaram e junto de mim se aproximou um homem, era o tio paterno da criança. Me explicaram então o porque me chamaram e me pediram que assinasse alguns papeis. A minha função ali era apenas burocrática. Foi quando me virei e vi ela... quanto tempo! Três anos, cabelos escuros cortados em linha reta acima do ombro, era lisinho, e uma franjinha que estava toda bagunçada. Ela era linda! Olhei para ela, tão frágil e tão linda, parecia uma boneca; me lembrou uma foto que tinha de infância. Mas ao mesmo tempo sentia tristeza por mim e especialmente por ela.

Ela me olhou com um olhar doce, mas um pouco cansadinha. Sua inocência não permitia ainda que ela decifrasse a complexidade que era a sua história. Ela era muito nova para entender tudo que se passava, quem eu era e o que eu estava fazendo ali. Pobre criança, tão alheia a maldade do mundo, mas tão envolta por ele. Seu coração puro ainda não foi quebrado, ela ainda não carregava nenhum ressentimento contra mim. Mas, certamente, no futuro ela me odiaria. Infelizmente isso seria inevitável!

As pessoas me julgavam, não entendiam porque eu não quis criar uma criança tão linda, o porquê a rejeitei. Certamente me chamavam de desnaturada para pior. Mas essas mesmas pessoas não tinham a mínima noção do que passei, do que passo, e como dói lidar com isso. Não é o tipo de decisão que você toma em um dia e no dia seguinte segue com a vida normalmente, como se nada tivesse acontecido. As consequências dos meus atos eu carrego diariamente, uma dor e trauma que terei que lidar ao longo de toda a minha vida. Mas eu olho para ela e não consigo sentir amor, só pena. Pobre criança, já nasceu sentenciada a lidar com duras questões.

Nenhuma criança merecia passar por isso. Ao contrário, deveriam ser cercadas de todo amor e cuidado, crescer em um ambiente saudável, ter pais que se dediquem e que se ofereçam diariamente para o seu desenvolvimento. Mas com ela não será assim. E eu realmente sinto por não poder ser a mãe que ela tanto merece, sinto por ela não ter um pai decente, sinto pelo abandono, sinto pelos julgamentos que ela certamente vai sofrer, sinto porque muitos deles serão por minha causa, sinto por ela ter nascido em um seio de tristeza e ressentimento, sinto por ela ter sido fruto de um crime.

Finalizada a questão burocrática eu estava dispensada para ir embora. Aquele homem a pegou pela mão e a conduziu para fora da enfermaria, como querendo leva-la para tomar um ar fresco enquanto aguardavam para serem atendidos. Quis me demorar mais alguns instantes, me certificar de que tudo ia correr bem. Mas parece que alguém avisou que eu estaria ali e aquele traste apareceu! Veio me cumprimentar, querendo se aproximar, fingindo que nada aconteceu. Eu recuei, não deixei me tocar, foi uma reação quase que automática! Foi como se, em uma fração de segundos, todo aquele turbilhão de sentimentos tivesse voltado à tona. Sentia raiva, rancor, ódio, nojo, repulsa, tudo junto e de forma intensa! Então me abracei como querendo me proteger de alguma ameaça.

Só Deus sabe os sentimentos obscuros que carrego por aquele homem. O quanto ando na rua assombrada, com medo de encontrá-lo; o quanto aquele rosto me faz mal! Por muito tempo desejei que lhe acontece o pior! Imaginei diversas formas de fazê-lo sofrer. Na minha cabeça, me imaginava desfigurando o seu rosto com algum objeto cortante só para fazê-lo sentir um pouco da dor que ele causou a mim. Quantas vezes a raiva e indignação me dominaram: ‘por que eu?’
Eu sofria mas ele não. Na cabeça dele a dimensão dos seus crimes não são ‘para tanto assim’. Já se passou muito tempo, mas a sensação é a mesma daquele infeliz dia em que ele me estuprou. Quem passou por esse tipo de trauma infelizmente sabe do que estou falando.

Comecei a passar mal, tive uma crise de ansiedade súbita. Queria saber se a menina ficaria bem, mas as circunstâncias já não me permitiam ficar mais ali. Saí de lado e ainda pude avistá-la de longe, de costas, junto ao seu tio. Certamente ela seria bem cuidada, já estava tudo encaminhado. ‘Desculpe, minha pequena, fique bem!’, disse de longe, e assim parti.
Acordei, era apenas um sonho! Uffa! Mas, apesar do alívio de saber que tudo aquilo foi apenas um pesadelo, tudo pareceu muito realista e o turbilhão de sentimentos ainda estava ali, vívido comigo. A angústia explodia em meu peito, a dor... estar na pele daquela mulher simplesmente me despedaçou! Tinha a sensação de que em algum lugar alguém estava passando por isso, sofrendo essa mesma angústia!

Eu tinha um dia inteiro pela frente e não queria carregar todo esse pesar comigo e por isso, no café, resolvi me abrir e falar por alto do meu sonho com uma colega de apartamento. Resolveu parcialmente. À noite chego em casa e vejo o noticiário: menina de 10 anos é abusada pelo tio e engravida. Virou caso de comoção nacional, uma história revoltante! E mesmo o aborto sendo autorizado pela lei para esses casos, houve muitos protestos e revolta de fundamentalistas religiosos para que a gravidez fosse mantida mesmo contra a vontade da criança e até da determinação judicial. Nem preciso dizer que isso mexeu muito comigo!

Quem sou eu para fazer um juízo perfeito sobre a causa do aborto, de apontar o dedo e dizer quem está certo ou errado. Essa é uma questão delicada e complexa, e não é minha intenção criar sentenças. Entretanto como mulher eu posso dizer que o nosso olhar sempre foi negligenciado.
Esse poderia ser mais um dos meus textos fictícios, mas não é. Eu realmente sonhei e eu realmente senti toda essa angústia dentro de mim, foi muito real! E se carregar essa angústia por apenas uma noite foi extremamente pesaroso, eu não consigo imaginar como se sente aquela que convive com esse trauma diariamente, carregando essa dor ao longo de toda uma vida!
Certamente há muitas dessas mulheres mundo afora; julgadas, marginalizadas, sofridas. Então escrevo esse texto não como forma de causar, mas primeiramente como ferramenta para me libertar desse sentimento negativo que me tortura e, depois, para trazer um pouco de luz a esse assunto. Devemos estimular a empatia e a compaixão, devemos entender que acima de qualquer moralismo existe a humanidade que nos une.

Mulher, saiba que você não está sozinha, não estamos!

A Pequenininha

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